É com temor e tremor que escrevo-lhes mais uma vez com vistas a meditar sobre a espiritualidade em sua perspectiva redentiva e não só resolutiva. Em tempos em que a urgência da resolutividade se impõe sobre a sensibilidade do processo, ousamos desacelerar. Ousamos ver. Ousamos ser curados, não apenas sarados. O texto que trago à baila é escrito por Marcos 8.22-26, é o trilho estreito por onde Cristo nos conduz, revelando que há curas que só acontecem em dois tempos. Isto é, Ele realizou uma cura em dois atos, como quem diz: nem toda resolução é redenção. Vejamos.
E chegou a Betsaida; e trouxeram-lhe um cego e rogaram-lhe que lhe tocasse. E, tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia; e, cuspindo-lhe nos olhos e impondo-lhe as mãos, perguntou-lhe se via alguma coisa. E, levantando ele os olhos, disse: Vejo os homens, pois os vejo como árvores que andam. Depois, tornou a pôr-lhe as mãos nos olhos, e ele, olhando firmemente, ficou restabelecido e já via ao longe e distintamente a todos. E mandou-o para sua casa, dizendo: Não entres na aldeia.
Jesus está numa aldeia às margens do mar da Galileia chamada Betsaida, que significa “Casa de Pescadores”. Nada obstante Betsaida ser notável por ter sido cidade natal de três apóstolos, Pedro, André e Filipe, a origem comum apontava para um contexto de religiosidade judaica, vida simples e contato direto com os ciclos da natureza - um ambiente propício para o chamado ao discipulado.
Pois bem. Trazem-lhe um cego e suplicam que Ele o toque. O pedido é claro, a intenção é sincera, a liturgia é conhecida. Mas o Cristo não segue o roteiro. Ele interrompe o rito e impõe outra coreografia. Toma o homem pela mão e o leva para fora do povoado. Sai do centro. Sai do conforto. Sai da expectativa. Sai do comum. A cura começa pela desconstrução do ambiente. Nesse diapasão, primeiro existe a necessidade de desconstruir para só depois iniciar a reconstrução.
Repare bem, se Jesus não nos arrancar da geografia da ansiedade e da topografia da previsibilidade, jamais enxergaremos com clareza. A cegueira não está apenas nos olhos, mas nas estruturas que a sustentam. O povo quer o milagre, quer o toque, mas Jesus cospe. Ele estilhaça a liturgia. Desagrada os zelosos da liturgia, mas agrada ao Espírito que sopra onde quer (João 3.8). E, ao fazer isso, restaura a possibilidade de um olhar redimido.
Perceba que a primeira vista traz confusão, "Vejo homens como árvores que andam." A segunda, revela a distinção. A redenção não só do olhar, mas da visão. Nesse sentir, vê é absolutamente dessemelhante do enxergar.
Eis a diferença entre o sarado e o curado. O sarado tem uma fisionomia funcional restabelecida; o curado tem uma humanidade redimida. O primeiro se satisfaz com a solução; o segundo anseia pela plenitude. Em um mundo que idolatra resultados, Jesus propõe processos; em uma cultura que celebra a eficácia, Ele insiste em formar a estatura por onde tudo começa e se desenvolve.
A espiritualidade redentiva é escandalosa porque desfaz o que é rápido, rompe com o que é eficiente, transgride com o que é previsível. Jesus cospe nos olhos, toca duas vezes, e só então envia de volta para casa, sem permitir que o agora, ex-cego, entre novamente no mesmo ambiente. Porque há ambientes que nos mantêm cegos, mesmo quando já fomos tocados a primeira vez. Há estruturas que nos embotam a percepção, ainda que nossas pálpebras estejam abertas.
Nesse sentido, a liturgia resolutiva é perigosa porque ela é sincera. Ela quer a cura. Ela quer o milagre. Ela quer a benção. Mas, quer do seu jeito. No seu tempo. Pela sua forma. Ela quer um Deus funcional, tão somente resolutivo, que resolva seu problema. Um Cristo previsível. Um Espírito doméstico. E, assim, constrói-se uma idolatria travestida de ortodoxia criando “deuses que têm olhos, mas não veem; mãos, mas não tocam; boca, mas não falam” (Salmo 115.5-7).
Essa intervenção, no entanto, não é apenas sobre a enfermidade, ela é sobre a interpretação. Nesse relato de Marcos, a primeira vez que o homem foi tocado, ele viu. Mas viu errado. Viu de forma resolutiva. Entenda, com a visão do pecado, "os olhos de ambos se abriram" (Gênesis 3.7), quando na realidadea a comunhão se fechou. O segundo toque reconfigura a visão e inaugura outra sensibilidade, dessa vez, muito mais profunda. O homem passa a ver "distintamente". Agora ele é capaz de discernir.
A espiritualidade redentiva, portanto, é sobre discernimento. E discernir é muito mais do que saber. Discernir é mais do que citar texto. Lúcifer citou texto. Conhecia a bibliografia. Sabia a exegese, mas não discernia o Espírito (Mateus 4.6). Uma teologia resolutiva pode ser exata, mas sem o sopro de Deus, ela é uma exatidão morta. Como olhos que veem, mas não enxergam.
Bonhoeffer já alertava que o discipulado sem cruz é um Cristo sem Cristo1. A espiritualidade redentiva é, pois, custosa - porque é formativa.
Paulo ora pelos efésios, "tendo iluminados os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança da vocação" (Efésios 1.18). Essa é a oração da espiritualidade redentiva. Aquele que se submete a ela não busca apenas resoluções. Busca sentido. E sentido é mais do que funcionalidade. Sentido é escatologia vivida. É eternidade presente.
Sair da tenda, como Abraão (Gênesis 15.5), é sair da miopia da própria expectativa. Ver as estrelas é contemplar aquilo que foi preparado antes para sustentar o que virá depois. É entrar na dimensão dos pensamentos de Deus, que são mais altos que os nossos (Isaías 55.9).
Jesus é o Filho que se submeteu não por opressão, mas por orientação, voluntariedade e amor. Sofreu não por punição, mas por formação (Hebreus 5.8). E se Ele se entregou ao processo, nós também devemos. Porque o Pai não está interessado em filhos sarados, mas em filhos curados. Curados da pressa. Curados do controle. Curados da liturgia. Curados do previsível.
A espiritualidade redentiva nos desarma. Nos conduz para fora do povoado. Nos devolve a casa. Mas, agora, com outro olhar. Um olhar que discerne. Um olhar que ama. Um olhar que vê.
Singela reflexão escrita ouvindo “Prélude” de Bach2:
Adendo¹: As balizas que norteiam esta reflexão não se firmam numa crítica à liturgia como expressão legítima da fé, mas à idolatria da previsibilidade, quando ela se torna um ídolo travestido de reverência.
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Obra “O Custo do Discipulado”, de Dietrich Bonhoeffer.
Esta reflexão foi escrita ao som de entre outras, o “Prélude” da Suíte nº 1 para Violoncelo Solo em Sol Maior, BWV 1007, composta por Johann Sebastian Bach, na interpretação de Yo-Yo Ma. Uma peça serena e densa, que ecoa o movimento interno da alma ao ser tocada duas vezes.