A ENCARNAÇÃO E O MISTÉRIO DA KENOSIS - DO ESVAZIAMENTO À PLENITUDE DO LOGOS
Esvaziar-se para Habitar
Compreender o mistério da kenosis e sua relação com a encarnação de Cristo é um desafio que exige mais do que uma leitura superficial. Trata-se de um profundo enigma teológico e filosófico, onde o esvaziamento do Verbo e a simultânea plenitude de Sua divindade geram um paradoxo que reverbera ao longo da história da fé.
Convido você a adentrar neste mistério e refletir sobre a profundidade da escolha divina em se fazer humano, sem abandonar, todavia, Sua essência.
A palavra grega kenosis (κένωσις), mencionada em Filipenses 2.7, descreve o “esvaziamento” de Cristo, ou “renúncia voluntária” das prerrogativas divinas ao assumir a natureza humana.
No entanto, este "esvaziamento" não significa uma perda de Sua divindade, mas refere-se à renúncia funcional de certos atributos divinos para que Cristo manifestasse plenamente homem.
O verbo grego kenóo (κενόω) que significa a ação de "esvaziar" ou "despojar", no contexto de Filipenses, denota um esvaziamento funcional, não ontológico. Ou seja, o ato de se "esvaziar" não é uma perda da essência divina, mas uma escolha de limitar o uso de certos atributos divinos [incomunicáveis], mantendo, contudo, a divindade intacta. Explico melhor.
Jesus, sendo Deus, escolheu se “esvaziar” de Sua glória visível e assumir a natureza humana de forma plena, sem renunciar Sua identidade divina.
Esse conceito de kenosis é muitas vezes mal interpretado, e a ideia de que Cristo teria renunciado completamente aos Seus atributos divinos durante a encarnação, aproxima-se da heresia kenótica. Essa interpretação contradiz as Escrituras, especialmente o Evangelho de João, que, em João 1.1 e 1.14, afirma de forma categórica que o Logos "era Deus" (ἦν θεός) e "se fez carne" (σὰρξ ἐγένετο), mantendo Sua identidade divina completa durante a encarnação.
Antes de prosseguir, permita-me dedicar algumas linhas ao conceito do Logos (Verbo). O conceito tem raízes profundas na filosofia antiga, especialmente em Heráclito1 (535–475 a.C.), para quem o Logos era o princípio ordenante e racional que mantinha a harmonia do cosmos. Para Heráclito, o Logos era a razão universal que sustentava a harmonia do universo, a "Lei" que organiza tudo. Filo de Alexandria2 (20 a.C. – 50 d.C.), por sua vez, entrelaçou essa ideia com a tradição judaica, entendendo o Logos como a mediação entre Deus [transcendente] e o mundo material [imanente], um intermediário que revelava a verdade divina. Para Filo, o Logos era a ponte que conectava o infinito ao finito, o eterno ao temporal, funcionando como um intermediário que possibilitava a revelação divina.
Já no Evangelho de João (90–100 d.C.), essa visão de Filo se concretiza de forma radical – dizia ele – o Logos não é apenas um princípio filosófico impessoal, mas uma pessoa – Jesus Cristo. João identifica o Logos (Verbo) com Cristo, dizendo que Ele "estava com Deus e era Deus" e através d'Ele, a criação se realizou (João 1.1-3). Vejamos.
No princípio, era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.
Cristo, portanto, não é apenas o mediador que Filo defendia, mas a própria encarnação do Logos divino, tornando-se a interlocução plena entre Deus e a humanidade, revelando a verdade de Deus de forma incomparável e pessoal (João 14.6). É o que o apóstolo Paulo já sublinhava em sua epístola a Timóteo escrita bem antes do Evangelho de João (aproximadamente entre 62 e 67 d.C.), “Porque há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem” (1 Timóteo 2.5), apontando que Cristo é o mediador supremo, o único capaz de estabelecer a reconciliação perfeita entre o divino e o humano.
À luz desse entendimento, o ponto nodal é que Cristo não renunciou de Sua divindade, mas escolheu não exercer plenamente os atributos divinos enquanto viveu na Terra. A renúncia não foi de essência, mas de funcionalidade. Ele não usou plenamente Seu poder divino de forma independente, mas limitou Seu exercício, dessas prerrogativas, para cumprir Sua missão redentora.
Outro ponto deveras relevante é a palavra grega morphe (μορφή), traduzida como "forma", usada em Filipenses 2.6 e 2.7 (provavelmente escrito entre 60 e 62 d.C).
v.6. Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus.
v.7. Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens
Repare que no primeiro versículo, Paulo afirma que Cristo "existia em “‘forma’ de Deus”, indicando Sua natureza divina plena. No segundo, a mesma palavra morphe é utilizada para descrever Cristo como assumindo “a ‘forma’ de servo”. Esse uso do termo não implica uma transformação substancial de Sua natureza, mas uma mudança funcional. Ou seja, Cristo, embora tendo tomado a forma humana, não perdeu Sua essência divina, mas escolheu viver de forma funcionalmente limitada.
Nesse sentir, o conceito de kenosis, deve ser entendido à luz, sobremodo, da ortodoxia cristã, conforme estabelecido pelo Concílio de Calcedônia (451 d.C.), que ensina que Cristo é "verdadeiramente homem e verdadeiramente Deus". A doutrina calcedoniana afirma que Cristo é uma única pessoa com duas naturezas distintas – divina e humana – sem confusão, mudança, divisão ou separação. Dessa forma, o esvaziamento de Cristo refere-se à Sua decisão voluntária de viver sem o uso pleno de Seu poder divino, mantendo, contudo, Sua natureza divina intacta.
Consoante a literatura joanina, a kenosis não deve ser vista como uma abdicação da divindade em sua essência. Cristo, ao se humilhar, escolheu não se apresentar em toda a Sua glória, conquanto assumiu a forma de servo para cumprir a obra da redenção.
Ele assumiu a plenitude da humanidade, exceto o pecado, porquanto continuava sendo plenamente Deus. A renúncia foi funcional [como homem], mas nunca substancial ou ontológica [como Deus].
Em síntese, a kenosis é um aspecto primordial na encarnação de Cristo, refletindo Sua humildade e obediência ao Pai. Ele escolheu viver como homem sem abrir mão de Sua divindade. A verdadeira cristologia deve afirmar que Cristo é, simultaneamente, Deus e homem em perfeita união.
Esvaziar-se, portanto, longe de representar uma perda de Seus atributos divinos, foi o meio pelo qual Ele tornou possível a salvação da humanidade, conforme claramente revelado no Evangelho de João, em total consonância com a ortodoxia teológica e reafirmado pela patrística.
Dei Gratia,
– Isaac Júnior
Heráclito de Éfeso foi um filósofo pré-socrático que propôs o Logos como o princípio racional que governava o cosmos.
Filo de Alexandria foi um filósofo judeu helenista que, ao integrar o pensamento grego e a tradição judaica, entendeu o Logos como o intermediário entre Deus e o mundo material.